Nosso poder de não praticar o mal
A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras: o poder divino.
No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem, e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo, trocando de lugar com os animais. Esse direito [o de matar um veado ou uma vaca] nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: "Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas", para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida.
O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um visitante da Via-Láctea – talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria (tarde demais) desculpas à vaca. Criticando Descartes: Descartes deu o passo decisivo: fez o homem ‘maître et propriétaire de la nature’. Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência. O homem é senhor e proprietário, enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autômato, uma máquina animada, uma machina animata. Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, isso não quer dizer que a charrete sofra, mas apenas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira os gemidos dos animais, e é inútil lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo num laboratório.
Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços. Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão, por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo.
Milan Kundera – "A Insustentável Leveza do Ser", 1983
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